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Como decretos e provimentos mudaram o atendimento a pessoas trans nos serviços notariais e registrais — e o que ainda precisa avançar.

A crescente visibilidade e o reconhecimento dos direitos da população transgênera têm impulsionado mudanças significativas nos serviços notariais e registrais no Brasil.

O que é o nome social?

Nome social é a designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. Já a identidade de gênero é a dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.

Como surgiu o reconhecimento do nome social?

O uso do nome social — aquele pelo qual a pessoa se identifica e é socialmente reconhecida — tornou-se um direito conforme estabelecido pelo Decreto nº 8.727/2016.

À época, vigorava o princípio da imutabilidade do nome: as regras de mudança do prenome eram restritas e, em geral, dependiam de processo judicial, com morosidade e incerteza no resultado.

Para garantir a dignidade de tratamento das pessoas trans na relação com a administração pública, o Poder Executivo Federal editou o Decreto nº 8.727/2016, dispondo sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Importante: o direito ao nome se constitui no Registro Civil. A definitividade do uso do nome só se perfaz após a alteração nos assentos (nascimento). O decreto não alterou a Lei de Registros Públicos; sua utilização é meramente declaratória e não substitui a identificação pelo nome civil (art. 4º), devendo ser acompanhada do nome de identificação civil.

Apesar do respaldo legal, a implementação do uso do nome social nos cartórios enfrenta desafios práticos. Fora do âmbito da administração pública, o nome social não é oponível erga omnes, o que pode gerar constrangimentos à população trans.

O papel dos cartórios na inclusão social

Com o Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), passou a ser possível a alteração definitiva do prenome e do gênero da pessoa trans diretamente no Registro Civil, independentemente de decisão judicial ou assistência de advogado.

Atualmente, conforme o Provimento CNJ nº 149/2023, a mudança é realizada com base na autonomia do requerente (maior de 18 anos) que, munido dos documentos previstos (art. 518, §6º), declara perante o registrador civil a sua vontade de alterar a identidade mediante averbação do prenome, do gênero ou de ambos (art. 516).

Essa alteração administrativa respeita a identidade de gênero e facilita o acesso a serviços públicos e privados (saúde, educação, assistência social), contribuindo para reduzir violência simbólica e estigma.

É fundamental que profissionais dos serviços notariais e registrais estejam sensibilizados e capacitados, garantindo atendimento respeitoso e conforme a legislação. Práticas inclusivas refletem o compromisso do sistema de justiça com a cidadania e os direitos humanos.

Nome social x alteração do prenome e/ou gênero

  • Decreto nº 8.727/2016: reconhece o direito ao uso do nome social no âmbito da administração pública; não substitui o nome civil; não autoriza inserção no registro civil; documentos podem trazer o nome social acompanhado do nome civil; não é oponível erga omnes; ato declaratório perante a administração pública.
  • Provimento CNJ nº 73/2018 (atualizado pelas regras do Provimento nº 149/2023): autoriza a mudança definitiva do prenome e/ou gênero; substitui o prenome e/ou gênero nos documentos; procedimento é sigiloso; dispensa o nome social; alteração passa a valer erga omnes; realizado diretamente no Registro Civil.

Uso do nome social no Tabelionato de Notas

O Tribunal de Justiça de São Paulo (Corregedoria Geral) aprovou provimento para incluir o nome social como campo da ficha-padrão de firma e na etiqueta de reconhecimento de firma, sempre acompanhado do nome civil, preservando a segurança do ato notarial. A solução surgiu após reclamação de usuária trans que teve negado o uso do nome social ao abrir ficha de firma; após pareceres e reuniões com o Colégio Notarial/SP, decidiu-se valorizar a identidade autopercebida sem exigir prévia alteração do registro civil.

Para quem já alterou nome e gênero no registro civil (procedimento do CNJ), não há “nome social” distinto: o nome civil já reflete a identidade.

Veja a íntegra da decisão aqui.

Veja a íntegra do Provimento CGJ/SP nº 32/2025, que permite incluir o nome social na ficha-padrão utilizada no reconhecimento de firmas, quando houver.

Conclusão

O avanço normativo dos últimos anos aproximou os serviços notariais e registrais das necessidades da população trans. A diferença entre o nome social (uso declaratório, especialmente na administração pública) e a alteração definitiva de prenome e/ou gênero (via Registro Civil) precisa ser conhecida por usuários e profissionais, para que o atendimento seja acolhedor, seguro e juridicamente adequado.

Alise Formenti

Tabeliã e Registradora Civil no Estado de São Paulo, especialista em Direito Notarial e Registral, professora e criadora do Curso “RCPN na Prática”.

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