O Provimento n.º 100 do CNJ transformou a atuação notarial no Brasil, viabilizando atos eletrônicos com segurança jurídica. Neste artigo, analisamos a compatibilidade entre testamento público e ato notarial eletrônico à luz do Código Civil, da prática notarial e da jurisprudência.
1.Impactos da pandemia e a transformação dos atos notariais no Brasil
A pandemia de Covid-19 catalisou mudanças significativas no âmbito dos serviços extrajudiciais, especialmente quanto à digitalização de atos notariais. Com a publicação do Provimento n.º 100/2020 pelo CNJ, surgem debates importantes sobre a extensão e os limites desses avanços, especialmente em relação ao testamento público, tradicionalmente considerado o mais solene dos atos notariais.
2. Fundamentação Normativa
2.1. Ato notarial eletrônico: conceito e requisitos
O Provimento n.º 100/2020 instituiu o sistema e-Notariado e definiu requisitos para a prática de atos eletrônicos com segurança jurídica. Entre eles:
- Videoconferência notarial para captação do consentimento;
- Assinatura digital pelas partes, exclusivamente pela plataforma e-Notariado;
- Assinatura do tabelião com certificado ICP-Brasil;
- Leitura e gravação integral do ato;
- Emissão de certificado digital notarizado e criação da Matrícula Notarial Eletrônica.
2.2. Projeto de Lei n.º 5820/2019
Antes mesmo da pandemia, o Projeto de Lei n.º 5820/2019 já propunha a modernização do art. 1.881 do Código Civil, permitindo a assinatura eletrônica e gravação de som e imagem para codicilos.
2.3. Normativas emergenciais e a pandemia
Diante do estado de calamidade, o CNJ publicou uma série de provimentos e recomendações, com destaque para os Provimentos n.º 91 a 96 e as Recomendações n.º 45 e 46/2020, orientando os cartórios a:
- Suspender ou reduzir atendimentos presenciais;
- Receber documentos por meio eletrônico;
- Estender prazos para prática de atos;
- Implementar videoconferências e assinaturas digitais.
2.4. O Provimento n.º 100 do CNJ
Com caráter definitivo, o Provimento n.º 100:
- Revogou as normas estaduais anteriores em sentido contrário (art. 38);
- Uniformizou procedimentos por meio do e-Notariado;
- Estabeleceu requisitos técnicos e jurídicos para validade dos atos eletrônicos (art. 17).
2.5. Testamento público como ato notarial eletrônico
Não há vedação expressa no Provimento n.º 100 à lavratura do testamento público por meio eletrônico. O silêncio normativo, aliado à redação do art. 17, permite concluir pela possibilidade, desde que respeitadas as formalidades legais.
3. Procedimentos Notariais Aplicáveis ao Testamento Eletrônico
3.1. Assessoramento jurídico do testador (art. 1.864, I, CC)
O tabelião deve orientar o testador sobre:
- Formas testamentárias válidas;
- Revogabilidade do testamento;
- Consequências jurídicas das disposições;
- Publicidade restrita e sigilo;
- Restrições da legítima dos herdeiros necessários.
3.2. Identificação e capacidade testamentária ativa
Nos termos do art. 18 do Provimento:
- A identificação pode ser feita com documentos eletrônicos, biometria ou cartões de assinatura;
- O tabelião deve aferir a capacidade mental do testador por empatia, escuta ativa e observação visual na videoconferência;
- É imprescindível a atenção ao princípio da juridicidade e às medidas protetivas da Recomendação n.º 46/2020 do CNJ.
3.3. Unicidade do testamento (art. 1.864, II e III, CC)
O ato deve ser celebrado em uma única videoconferência, com:
- Leitura integral do testamento em voz alta e gravação do ato;
- Presença remota simultânea de testador, testemunhas e tabelião;
- Assinatura digital de todas as partes ao final da leitura.
A presença remota, nos termos atuais, equivale juridicamente à presença física.
3.4. Testamento híbrido
Nos termos do art. 30 do Provimento, é possível o testamento híbrido, com partes presentes física e remotamente, desde que:
- Haja videoconferência una, com leitura integral gravada;
- Todos assinem (digital ou fisicamente) na mesma ocasião.
3.5. Assinatura digital
A assinatura digital é validada pela MP 2.200-2/2001 e reforça a integridade do documento notarial. Todo o processo ocorre dentro da plataforma e-Notariado.
4. Jurisprudência e Tendência de Flexibilização
“Não se pode somente pela forma, prejudicar o conteúdo do ato de disposição quando inexistir dúvida acerca da própria manifestação da vontade do declarante.” – Min. Nancy Andrighi, STJ
A jurisprudência atual caminha no sentido de privilegiar a vontade do testador em detrimento de formalismos excessivos, desde que haja segurança jurídica suficiente para garantir a autenticidade do ato.
5. Conclusão
É possível a lavratura de testamento público por ato notarial eletrônico, desde que observadas as exigências do Código Civil, especialmente no que tange à videoconferência una, à gravação integral da leitura do ato e à assinatura digital por todas as partes.
A atuação do notário, ao lado da segurança técnica do e-Notariado, garante a validade do testamento eletrônico, preservando a vontade do testador e sua função social.
O testamento é, acima de tudo, um instrumento de paz — e sua formalização não pode ser incompatível com os avanços da tecnologia, desde que essa preserve sua essência.